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Sumário
O presente artigo tem como objetivo analisar a proposição, a decisão liminar e os efeitos da ADPF 635 – ação constitucional movida por organizações da sociedade civil acerca da letalidade policial no ano de 2020 – com vistas a adoção de salvaguardas na atuação policial. A partir de uma experiência concreta de litígio estratégico em direitos humanos, pretende-se investigar as disputas jurisprudenciais em torno do modelo brasileiro de polícia e assinalar limites e possibilidades de um controle cidadão da ação policial e do manejo de instrumentos jurídicos para realização desta empreitada.
No dia 05 de julho de 2020, uma decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal, Edson Fachin, determinou que a polícia militar do estado do Rio de Janeiro se abstivesse de realizar operações em comunidades fluminenses durante a pandemia, salvo em condições absolutamente excepcionais1TEIXEIRA, Matheus. Fachin restringe operações de polícia do Rio durante Covid-19. Folha, 05 de junho de 2020. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/06/fachin-restringe-operacoes-de-policia-do-rio-durante-covid-19.shtml.. Foi uma decisão histórica que sinalizou no sentido de controlar o policiamento ostensivo e interrogar quanto aos limites e fronteiras da ação policial, sobretudo em territórios de maioria populacional negra e pobre.
Na decisão, estabeleceu-se, sob pena de responsabilização civil e criminal, que as operações policiais excepcionalmente realizadas fossem justificadas por escrito pela autoridade competente, com a comunicação imediata ao Ministério Público e que fossem adotados cuidados excepcionais, para não colocar em risco ainda maior a população, a prestação de serviços públicos sanitários e o desempenho de atividades de ajuda humanitária.
A medida foi adotada nos autos da ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) 6352ADPF’s são ações com o objetivo de evitar ou reparar lesão a preceito fundamental resultante de ato do poder público. Trata-se de um tipo de ação que se usa para discutir a situações nas quais há uma violação a valores que embasam a ordem jurídica do Estado e o valor do texto da Constituição. ajuizada pelo Partido Socialista Brasileiro juntamente com organizações da sociedade civil com vistas a prevenir a ocorrência de maiores riscos à população desse estado que, segundo a petição assinada por dezenas de organizações, vem sendo sistematicamente vítima de ações abusivas por parte das autoridades policiais. A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental é uma modalidade de medida judicial proposta para evitar ou reparar lesão ao texto da Constituição no que se refere aos valores e critérios fundamentais que embasam a ordem jurídica do Estado.
A ação é histórica também porque, mesmo tendo sido assinada por um partido político (exigência da legislação brasileira para proposição deste tipo de ação), a ADPF 635 foi formulada em permanente debate com dezenas de organizações populares envolvidas na mobilização dos grupos de favela, entidades do movimento negro e organizações de vítimas de violência do Estado. A articulação que produziu e trabalhou pelo processamento da ADPF 635 reflete importantes um amplo rol de atores políticos da luta por direitos humanos e simboliza grande parte da formulação política e jurídica sobre polícia no Brasil.
A decisão do ministro Edson Fachin foi convalidada por outros sete ministros da Corte e a proibição de operações nas favelas cariocas durante a pandemia foi mantida3STF confirma restrição a operações policiais em comunidades do RJ durante pandemia. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=448994&ori=1 . Na prática, a decisão representou um reconhecimento de que a ação da polícia nas comunidades cariocas representava um agravo, e não uma salvaguarda, aos direitos da população e firmou um importante precedente judicial na medida em que interpelou o paradigma bélico da ação policial e, ao mesmo tempo, reafirmou a necessidade de medidas firmes de contenção à atividade das polícias, sobretudo em comunidades negras e pobres.
Já nos primeiros meses de vigência, a medida mostrou excelentes resultados em termos de redução do número de vítimas de morte decorrente de intervenção policial (autos de resistência) sem que o número de homicídios e roubos, por exemplo, parassem de cair . Ou seja, a restrição às operações policiais não importou em mais insegurança (em termos de mais ocorrências criminais) para o conjunto da população, pelo contrário, o que se viu foi um decréscimo nas ocorrências criminais.
Conforme dados do estudo “Operações policiais e ocorrências criminais: Por um debate público qualificado”, do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (GENI) da Universidade Federal Fluminense (UFF) a região metropolitana do Rio de Janeiro registrou, após a medida do STF, uma queda de 70% no número de mortes decorrentes de incursões policiais, além de reduções significativas nos registros de crimes contra a vida (48%) e contra o patrimônio (40%)4Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (GENI) da Universidade Federal Fluminense (UFF). “Operações policiais e ocorrências criminais: Por um debate público qualificado”, 2020..
A suspensão de operações policiais marcou uma queda brutal no número de casos de violência letal por parte da polícia, mas, ao mesmo tempo, desafiou as autoridades a pensar porque é tão difícil garantir segurança para nossas comunidades? Porque é tão complexo interromper o ciclo de mortes tão profundamente arraigado no seio de nossa experiência social?
Apesar dos efeitos evidentemente positivos, a decisão judicial que limitou as operações policiais no Rio de Janeiro foi largamente combatida por setores da segurança pública e por altas autoridades do executivo que afirmavam que a medida limitara o combate ao crime pelo Estado e que o Rio estaria se tornando o lugar da impunidade e da insegurança. Tudo isso em total desacordo com o que revelavam os dados e com a fala de especialistas do setor.
Em julho de 2022, por exemplo, o presidente da República, Jair Bolsonaro, criticou o STF alegando – sem qualquer base factual ou dado estatística que amparasse suas declarações – que a suspensão das operações policiais no Rio de Janeiro representava uma liberação para práticas criminosas. “O Rio de Janeiro até hoje tem área de exclusão, onde a Polícia Militar não pode agir por decisão do Supremo Tribunal Federal e a bandidagem cresce nesta área e a PM tem dificuldade de combater esses marginais”, disse Bolsonaro após ao confrontar as medidas do Poder Judiciário5https://www.em.com.br/app/noticia/politica/2022/07/21/interna_politica,1381834/bolsonaro-culpa-stf-por-mortes-em-operacao-no-complexo-do-alemao-no-rio.shtml.
Mas, porque foi necessário que o Supremo Tribunal Federal determinasse a suspensão das operações policiais no Rio de Janeiro?
Os anos de 2018 e 2019 foram especialmente perturbadores para os moradores das favelas do estado do Rio de Janeiro. No período, acumularam-se casos de vítimas de violência policial num recrudescimento de operações bélicas lideradas pelo então governador do estado Wilson Witzel e contabilizaram-se muitos corpos – de crianças inclusive – alvejados por munições adquiridas e manuseadas por servidores públicos. Apenas nos nove primeiros meses de 2019 no Rio de Janeiro foram registradas 1.402 mortes de civis em operações e patrulhamentos policiais. O que representa uma média de cinco mortes por dia, ou seja, um número bastante superior ao de países que estão em estado de guerra declarada.
Na ADPF as organizações da sociedade civil questionam dois decretos estaduais que regulamentam a política de segurança fluminense e pedem o reconhecimento das graves violações de direitos humanos cometidas pelas forças policiais nas favelas, além da implementação de medidas concretas para reduzir a letalidade e garantir justiça às vítimas.
Na ação os movimentos sociais solicitam ao Poder Judiciário que, ao reconhecer o contexto de sistemática violação de direitos humanos realizada pela polícia, estabeleçam-se medidas práticas para conter o uso da força policial e ampliar o controle e a fiscalização sobre a atuação dos profissionais da segurança pública. Entre os pedidos apresentados na ação estava a implementação e monitoramento de um plano de redução da letalidade policial com ampla participação da sociedade civil e instituições públicas comprometidas com a promoção dos direitos humanos; a não utilização de helicópteros como plataformas de tiros; rigor na expedição de mandados de busca e apreensão, a fim de evitar diligências aleatórias e ilegais, bem como na preservação dos locais em casos de crimes cometidos nas operações policiais e de documentação precisa, visando evitar a remoção de indevida de corpos de vítimas ou alteração do local por quaisquer pretextos.
Além disso, a ação visa também teve como objetivo assegurar absoluta excepcionalidade das operações policiais em perímetros em que estejam localizadas escolas, creches, hospitais e postos de saúde, e a elaboração de protocolos para atuação restrita em casos permitidos; suspensão do sigilo de todos os protocolos de atuação policial e determinação da obrigatoriedade de elaborar, armazenar e disponibilizar relatórios detalhados sobre cada operação policial e instalação de câmeras e equipamentos de GPS nas viaturas e fardas dos agentes.
Basicamente almeja-se por meio desta medida judicial era controlar práticas abusivas e discriminatórias limitando a frequência com que se realizam incursões policiais e, com isso, forçando o Estado a buscar meios alternativos de resolução dos conflitos identificados nas comunidades.
O centro da argumentação é que o modelo de policiamento baseado nas operações (geralmente de grande porte) e na presença ostensiva e bélica nas comunidades resulta em mais, e não menos, violência e insegurança. O que se pretende então é assinalar é que não é possível admitir a reprodução inercial da violência das forças de segurança tampouco se pode naturalizar um modelo que se baseia exclusivamente no uso da força e em critérios pouco claros para buscas pessoais, revistas domiciliares e prisões em flagrante (espécie de prisões para averiguação) por parte das polícias.
Visa-se indiretamente nesta ação foi discutir o excessivo da força pelas autoridades policiais no cotidiano dos espaços urbanos e, ao mesmo tempo, o excessivo uso das próprias polícias que são indevidamente tratadas como instância inevitável para gestão do espaço público e da vida social. Interpela-se lateralmente por meio desta APDF a associação quase sagrada e imutável de que as operações policiais – sobretudo aquelas realizadas no começo das manhãs com uso de blindados e helicópteros – são indispensáveis à preservação da ordem pública e manutenção da vida social. Porém, tal posição é inverídica e a polícia não é a melhor instância de mediação de problemas e resolução de conflitos sociais podendo, muitas vezes, agravá-los.
Porque um menor número de operações policiais é necessário para obter mais segurança?
No Brasil, as polícias mantêm um perfil disfuncional e excessivamente violento. As polícias guardam ainda a marca de uma sociedade bastante autoritária caracterizada pelo racismo e pelo passado escravista que produz, ainda hoje, sérios e graves efeitos na estrutura política e na vida social do país. O problema preservou-se com o modelo de polícia e segurança pública construído em 1988 – na transição do regime militar para a democracia – que manteve a vinculação da polícia às Forças Armadas, conservou a separação entre polícias civis e militares e não depurou as marcas do longo período ditatorial. As polícias brasileiras padecem de problemas de caráter estrutural, formativo e cultural que resultam em constantes e reiterados casos de corrupção, abuso de poder e violência de Estado.
A expressão mais evidente deste modelo é a centralidade das operações no cotidiano da ação policial e a sobreposição de funções dos dois tipos de polícia existentes no Brasil: a polícia civil e a polícia militar. Pela legislação brasileira as funções de investigação são privativas da polícia civil e as de ronda nas ruas da polícia militar, conhecida pela presença ostensiva no patrulhamento das cidades. Essa separação, prevista pela constituição, gera problemas adicionais com repetição de atividades, invasão das atribuições e, o mais grave, com frequentes casos de abusos e ilegalidades sistemáticas.
O problema pode ser ilustrado em relação ao tráfico de drogas, que é a maior causa de encarceramento do Brasil nos últimos anos e que é responsável pela maioria das prisões em flagrantes no país.
O comércio de drogas no país (seja para exportação seja para o mercado interno) é feito por grandes grupos economicos ilegais (as facções) que utilizam-se da mão de obra de jovens negros, majoritariamente muito pobres, que assumem o comércio varejista com pequenas quantidades de substância psicoativas e que são levadas ao sistema prisional. Trata-se de prisões realizadas de maneira abusiva por policiais militares que, por princípio, não deveriam “investigar crimes” e muitas vezes em incursões fortemente armadas que resultam em trocas de tiros e que produz medo e insegurança nas comunidades.
O modelo não logra conter a violência, reduzir a circulação e o consumo de drogas tampouco ampliar o controle do Estado sobre os ilícitos praticados nas comunidades. São práticas reproduzidas inercialmente pelas polícias e pelo sistema de justiça que tem como condão agravar o problema da violência sem que se toque nos reais desafios associados ao consumo e comércio de drogas que são: saúde pública, assistência social e controle público dos mercados.
Mas, porque é apenas a polícia a base de toda atuação estatal no que tange a um tão complexo problema político e social? De que maneira é possível sustentar práticas tão ineficazes como estas diante dos custos excessivos da proibição e do armamentismo?
É o modelo de policiamento ostensivo, baseado nas incursões bélicas e na interdição de outras modalidades de intervenção estatal, que oferece as bases desta paralisia que interrompe as inovações e que bloqueia a construção de alternativas.
Como o controle das operações policiais pode auxiliar na construção de alternativas no campo da segurança?
Afastar-se do modelo de policiamento proativo é decisivo para a construção de alternativas no campo da segurança pública, pois é uma condição necessária para estabelecer outros meios de gestão de conflitos e problemas nas comunidades. A experiência da suspensão das operações nas comunidades do Rio de Janeiro mostra que a medida pode ser bem-sucedida em termos de controle da violência letal no Estado e visa à construção de alternativas e ao fim dos modelos autoritários de administração política.
É importante notar que toda a experiência não foi um sucesso, pois apenas parte dos pedidos feitos pela sociedade civil entrou em vigor. O Tribunal decidiu apenas que as operações deveriam ocorrer apenas em casos excepcionais e que era necessário, nesses casos, notificar o Ministério Público. Pedidos como a instalação de câmeras nos uniformes policiais, a elaboração de um plano com divulgação detalhada dos planos de operações, etc., não foram inicialmente aceitos. Além disso, um ano após a decisão, o comando da polícia militar começou a não cumprir a ordem judicial e passou a realizar operações sem notificação prévia e sem justificativa de necessidade.
Apesar do descumprimento da decisão judicial pelo comando da polícia militar, vale afirmar que a experiência de suspensão das operações policiais no Rio de Janeiro foi um exemplo importante de como é possível controlar políticas e, assim, criar condições para a gestação de outros modos de gestão de conflitos. O desafio central da agenda democrática para a gestão do mandato policial envolve basicamente a revisão pública do mandato policial, com o objetivo de revisar, por meio de meios democráticos e debate, a autorização pública para o uso da força pelo Estado.
Parar as operações e estabelecer limites claros para as ações policiais a fim de reduzir a letalidade, como exigido pela ADPF 635, evidentemente não é suficiente para redefinir o mandato policial.
Endnotes
Autor
Felipe da Silva Freitas é doutor em direito pela Universidade de Brasília, professor do Programa de Pós Graduação em Direito do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa. Foi, coordenador de programas da Rede Liberdade (2021 – 2022) e diretor da Plataforma Justa (2020 – 2022). Atualmente é Secretário de Justiça e Direitos Humanos do estado da Bahia, Brasil.
Ilustração de Andréa Tolaini via femiñetas
Andréa Tolaini é uma artista visual, muralista e ilustradora de São Paulo, Brasil. Nas criações da artista, a natureza e o universo são usados como metáforas das emoções, frequentemente expondo as dores, as forças, a paixão e as ansiedades sociais, especialmente as relacionadas com a feminilidade. Em sua arte, os braços se transformam em asas, as veias se transformam em riachos, os corpos são sementes e as flores brotam de cicatrizes. Assim como na natureza, o trabalho de Andréa transborda diversidade: em formas, corpos e emoções, desafiando nossa percepção para ver a beleza além dos padrões e idealizações corporais impostos pela cultura dominante. É uma arte forte mas sensível, gutural mas poética. Reivindica nosso lugar de orgulho como animais. Seu trabalho expõe sem medo a parte mais orgânica de nossa natureza animal.
Andréa ilustrou para a Revista Marie Claire Brasil, Jornal Femiñetas Espanha, Sesc Santo André, Articulação Nacional pelos Direitos da Natureza, entre outros. Criou capas para vários projetos de escritores e músicos como Déa Trancoso (BR), Rosane Pereira (BR), Indy Naise (BR), Ines Loubet (PT) e Something Sleeps (EN). Pintou murais para o Sesc, Sinpeem (Sindicato dos Profissionais da Educação no Ensino Municipal de São Paulo), Coletivo pela Saúde e Sexualidade da Mulher, Mídia Ninja, Desfile do Jaguar, Polo Cultural Chácara do Jockey e Secretaria de Cultura da Cidade de São Paulo, entre outros.
Femiñetas: feminismo en viñetas é um coletivo, uma plataforma ilustrada e transoceânica. É formado por cerca de 300 ilustradoras e escritoras de diferentes partes do mundo que formam uma comunidade ativista narrada na linguagem dos quadrinhos.
Flor Coll é a coordenadora e fundadora de femiñetas. É jornalista e licenciada em Comunicação Social pela Universidade Nacional de Rosario (Argentina) e mestre em Gênero e Comunicação pela Universidade Autônoma de Barcelona (Espanha). Depois de trabalhar por mais de 15 anos como jornalista em rádio, TV e mídia impressa argentina, atualmente realiza campanhas de gênero e comunicação para ONGs e é docente no Mestrado em Comunicação e Gênero da Universidade Aberta de Barcelona na Espanha (UAB).
Em 2020, co-criou a Chamana Comunicación, uma consultoria com sede em Barcelona, onde é diretora de imprensa e formação.